“o governo e diversas multinacionais pagam os alienígenas cabeçudos para bombardearem em nossas mentes propagandas e publicidades subliminares””

Wednesday, December 29, 2004

Sonhar talvez...

Toc, toc, toc. Despertar. Da para escutar o rangido de cada fio de cabelo se esfregando sobre minha cabeça. Cada um. E meus tímpanos choram a cada ruído. Cada um. Ressaca. Ressaca? Parece ressaca. Nunca bebi na vida. Dói. A cabeça, os olhos, a coluna, meu braço esquerdo. Tudo, tudo, tudo. Dói demais. Parece ate à tristeza... Toc, toc, toc. Dor. Minha cara afundada sobre um travesseiro. Mascara de dormir? Nunca usei isso na vida. Uma no meu rosto. Onde estou? Nu? Estou com pijama. Só bermuda. Esta quente. Febre? Remédios? Que lugar é este? Como será que ela esta? Ela? Quem é ela? Ela esta do outro lado. Toc, toc, toc. Ela despertou? Mãos sobre os olhos, sono, calor. Dor. Tristeza. Nesse aposento não tem nada. Só uma cama. E eu. Toc, toc, toc.
- Já vai...
Cambaleio. A jornada ate a porta parece eterna. Toc, Toc, Toc. Eu tenho lembranças dela. Mas sei que nunca a vi. Sei o seu nome. Mas nunca o pronunciei. Sei o que sinto por ela. Mas nunca senti isso. Toc, toc, toc. A maçaneta é quente. Eu esperava o frio do ferro. Ela parece ser de ouro. Esta quente. Minha mão também esta quente. Tudo. Tudo esta quente.
Mais um rangido. A porta se abre. Lá estão os olhos dela. Eu os encontrei. A dor parece diminuir. Olho bem para ela e reconheço todos seus atributos. Olho para trás dela. Ela esta lá. Ela esta dormindo, numa cama como a minha. Usando uma mascara de dormir. Como a minha. Escuto o respirar atrás de mim. Estou lá. Realmente. Nesta sala apenas estou eu e a cama e eu. Ela caça meus olhos. Meus olhos agora já não me pertencem. Ela esta suando. Eu também.
- Estou sonhando... – Ela fala.
- Fico feliz de estar em seus sonhos.

(Samuel Gois Martins) 30/12/2003

Sunday, December 05, 2004

Coração não incluso

Trim trim
Pilhas não inclusas.
As bonecas não se mexem sozinhas.
O chapéu não vem incluso.
Controle remoto. Desliga.
- Manhê!
- Que foi querida?
- Quero uma boneca nova!

A criança estava na sala, corredor, e agora cozinha.
- Manhê!
Trim trim.
A mulher esta cortando cenouras. Lamentando pela do seu marido não ser tão grande quanto.
- Que foi querida?
- Quero uma boneca nova!

A criança estava na sala, corredor.
No corredor são três quartos.
Num quarto tem um garoto.
- Manhê!
Ele esconde seu pequeno pênis de baixo da toalha estrategicamente posicionada.
- É só a pirralha...
E volta aos seus afazeres.
Primeiro, ligar o monitor.
- Que foi querida?
Claro que também desligou o monitor.
É um site gay.
- Quero uma boneca nova!
“Eu também queria uma...”, pensa o garoto.
Trim trim.

Trim trim, toca o telefone.
- Manhê!
O pai escuta o grito da menina. Como ele queria comer aquela menina. O pai esta num outro quarto do corredor.
Trim Trim, o telefone toca.
- Diga querida.
- Eu atendo. – fala o pai.
- Alô?
- Quero uma boneca nova!
- Certo, ela vai sair mais tarde. Aqui mesmo.

- Pergunte ao seu pai!
- Paiê!
- Diga querida?
- Quero uma boneca nova!
- Vá com a sua mãe e seu irmão essa tarde compra uma boneca nova.
- Obrigado pai! Eu te amo!
- Também querida. Também. Agora deixa o papai. O papai ta no telefone. Isso mesmo, hoje à tarde.

(Samuel Góis Martins) 05/12/04

Thursday, December 02, 2004

Só mais uma historia sobre olhos perdidos nas estrelas

- O que é isso?
- O Sol.
- E isso?
- Um buraco negro.
- E isso?
- Essa é fácil...
- Mentirosa!

Só algo que chamou atenção, dentre tantas outras.
Tento me lembrar de dividir a realidade das coisas que costumo imaginar, e, não controlar.

Apenas crianças brincando ao redor de uma lamparina no escuro. Estou com febre.

- Sente-se melhor?
Tudo turvo? Linda como sempre.

- Onde estou?

Acho.

- Você esta aqui...
- Como fiquei assim?
Seus olhos retraem receio.
- Você não lembra?

E os meus olhos se perdem distraídos, procurando alguma coisa nas estrelas. E foi assim que entendi.

Onde eu estava não tinha teto.

Só depois de muito tempo reconheci o som que entrou sorrateiro no meu ouvido. O esquerdo.
“Você não lembra?”.
- Sua voz é bonita.

E que sorriso.
Mesclava pena com alguma coisa que sabia o que era... Mas não me vinha o nome.

- Você nunca foi modesto.

- É fácil sim!
- Então diz o que é!
- Deus!

(Samuel Góis Martins) 02/12/04

Saturday, November 27, 2004

Galho em galho

A cidade dos macacos.
Por que macacos? Esta cheia de arvores.
- E cada um procura pelo seu galho.
- Não consigo entender por que ela me deixou.
- Foi um final legal para o documentário. Já foi num zoológico?
- Já sim.
- Cinco anos... Cinco anos!
- Adoro os macacos.
- Eles são engraçados.
- E quando eu chego em casa... Lá esta ela com o... O...
- Já viu macacos fazendo amor?
- Com o carteiro!
- Os do zoológico dessa cidade são uns danadinhos, em?
Tirou o resto de comida que se escondia entre um dente e outro com um palito.
Cuspiu no chão.
Um cuspe cheio de lamentações e arrependimentos.
- Eu devia ter escutando mamãe...
Deu uma baforada do cigarro.
- Isso ta te matando aos poucos...
- Não to com pressa.
- Ei, pare de chorar cara.
- Isso ai. Mulheres são assim, você sabe. E você já a matou, não foi? Ta tudo bem então.
- Vou matar o carteiro.
A vista para o mar durante a noite, lua cheia, cheiro de esgoto e cigarro. O som de um e outro carro modificado deslizando em sua própria adrenalina. Jovens.
Macacos.
- Você tem esse direito.
- Isso.
- Vou matar o carteiro aos poucos. Quem nem o cigarro.
- Isso.
- To começando a ficar chateado com essa implicância de vocês com o meu cigarro.
- Primeiro vamos lá em casa.
- Fazer o que?
- Vou matar o maldito carteiro...
Algumas ondas morrem e outras nascem.
O cigarro acabou.
O cuspe deslizou.
O carro bateu.
- Ver o documentário pô! Cês tem que vê os macacos...
Tudo bem...
Arvores nas proximidades.
Os macacos pularam do carro em segurança para seus galhos.

(Samuel Góis Martins) 27/11/04

Friday, November 12, 2004

Violência banal

Estou morrendo.
- Você esta me matando.

Os cabelos cheios de cachos, dourados, com uma cor vermelha só lembrada em pesadelos. Retirou a faca.
Lento e harmoniosamente.
- Estou.
- Por que?
- Por que?

Enfiou o dedo dentro do buraco produzido.
Procurando por suas vísceras.
Dor.
- Por favor.
- Por favor? Esse é o seu fígado? Ola?

Morri.
Mas deixo claro que não era o meu fígado.

(Samuel Góis Martins) 12/11/04


Thursday, November 11, 2004

Crianças e estrelas

- Você veio mesmo...
- Duvidou é?
- ...
O jovem de cabelos prateados enfiou as mãos nos bolsos. Procurando por alguma coisa sem grande importância.
Ou escondendo inquietação.
O outro garoto, mais novo, mais inteligente, segurava uma peneira, daquelas de mineradores.
Era uma noite incomum essa.

- Eu nunca minto. Nunca. Ate trouxe a peneira.
- É... To vendo...

Algumas estrelas iriam deixar de habitar o céu.

(Samuel Gois Martins)

Saturday, October 30, 2004

Duvidas...

Eu estava escrevendo qualquer besteira.
- Oi.
Veio um fantasma. Desses que não tem o que fazer da vida. Claro. Já que estão mortos.
É.
Essa piada não teve graça nenhuma.
- Não mesmo.
- O que foi?
- O que você faz tanto na frente desse...Desse...Disso ai?
- Isso ai é um computador. Eu escrevo.
- Escreve o que?
- Boa pergunta.

(Samuel Gois Martins) 30/10/04

Monday, October 25, 2004

Tragado

Eu estava perdido em uma floresta.
Daquelas que nos perdemos em sonhos e pesadelos, com folhas verde-escuras, um céu tragado por nuvens nubladas, sons dos mais diversos ligares que valem apenas de susto.

Mas tinha um nativo.

- Você conhece um atalho?
- Talvez.
- Como talvez?
- Vai depender dos seus olhos.
- Meus olhos?

Ele correu ente as matas. Como seguir? O lugar gira.

Gira.

Então deixarei as matas me tragarem como o tragaram? É o único jeito? Talvez, em? Talvez. Foram folhas largas, aquelas folhas.

Por onde ele foi?
Foi por ali.

Escolhi fechar os olhos e não encarar as descobertas do outro lado.

Como na vida.

Ele me esperava do outro lado.

- Talvez?
- Talvez.
- O que é agora?
- Já viu onde você esta?
- Na areia movediça.
- Então?
- Vou me deixar afundar. O que tenho a perder?
- O que poderia desvendar mais?
- Apenas charadas.
- É isso que você acha?
- Não vivo charadas.
- Então vai morrer?
- É uma certeza. E não uma charada.
- Tem certeza que vai morrer após isso?
- Vamos esperar para ver.

O suor escorria por sua testa. Preocupado? Com o que?
Por que me olhas aflito?
A areia já esta na cintura.
Ele pegou um galho, aproximou de mim.

- Venha.
- Por quê?
- Você pode fazer mais do que isso.
- Apenas estou indo contra o padrão.
- Qual será o verdadeiro padrão? Venha.
- Como assim?
- Eu ou a areia?
- Você é o nativo.
- O nativo que habita seus sonhos.
- Sim...
- Essa areia, sonho. Entende?

Observei a areia. Estava me misturando com ela. A tinta de minha existência se desbotava e misturava com o marrom.

Tragado pelas matas? Tragado pela areia?

Tragado por mim?

Peguei no galho. O nativo sorriu.

Agarrei com força. O nativo me puxou. Sentia-me sair. Mas alguma coisa ficou lá.
Segurei com força

A caneta estourou.

Olhei anotações manchadas sobre a prancheta. O quarto esta girando. O lugar...

Gira.

- Alguma coisa ficou.


(Samuel Gois Martins) 25/10/04

Thursday, October 21, 2004

O cuspe que roubou minha lasanha

Foi que se deu num daqueles dias que nada de extraordinário arriscaria acontecer. É engraçado como normalmente as coisas extraordinárias acontecem somente nesses dias. Um frio na espinha, um espirro mal dado, um verbo não executado.

Foi rápido e escandaloso, o cuspe, o escorregão, o barulho.

E lá estava o teto na minha frente.
Queria lembrar o que estava fazendo.

- Verdade. O que você estava fazendo?

Agachada ao meu lado. Familiar? Seria uma criança? Parece uma criança, veste branco, e seus olhos são literalmente negros.
Agora lembrar o que eu estafa fazendo. Ou o que eu ia fazer. Quem andou cuspindo pela casa?

Tinha haver com Itália.

- Lasanha.
- Como?
- Eu ia requentar a lasanha que sobrou do almoço.
- Há!
- É.
- Hum...
- Diga.
- Não ta curioso?
- Como assim?
- Não ta nem um pouco curioso para sabem que eu sou?
- A dor na bunda vale mais.

Interessante notar. Não sentia mais dor na bunda. Na verdade era para eu ta sentindo um monte de dores em varias regiões do corpo. Tem até uma poça de sangue do lado e...

- Bem... Quem é você?
- Adivinha.
- Hum...
- Então?
- Deixa pelo menos eu requentar minha lasanha?
- Hã?
- Uma lasanha requentada. Pelo menos isso...

(Samuel Gois Martins) 21/10/04

Wednesday, October 20, 2004

Restos do nada

Guardou seu orgulho dentro de uma caixa.

- Foi tudo que sobrou.
- Imagino.

Ela com desdém, é claro, puxou com fraqueza a caixa.

- Então é tudo que você tem para mim?
- É tudo que tenho para qualquer pessoa.
- Qualquer pessoa?
- Qualquer pessoa.

Alisando a caixa com as mãos.

Um leve assobio flutua com a brisa inesperada.

Alisando a caixa com as mãos. Talvez menos que a própria caixa. Seu conteúdo não vale nada.

Seus olhos não eram mais os mesmos. Cruzou com os dele. A pupila escalava morros de fogo e fúria, tudo bem contido dentro da cristalina.

- Não sou qualquer pessoa.

Bem contido, talvez. Mas nada discreto.

Abriu a tampa da caixa. Admirada, seria a melhor definição.

- Eu sei disso. Mas é tudo que tenho, e sei que é o suficiente.

Ergueu o punhal.

Sangue.

Uma pequena cachoeira, uma bela cachoeira. Seu vestido era branco.

- É verdade. O suficiente.

Levantou-se em leveza, com a caixa entre as mãos.

- Eu realizo seu ultimo pedido então. Eu carregarei o teu orgulho. Eu carregarei o teu sangue. E o seu outro desejo...

Sem mais existir atrás.

- O outro desejo... Deixo para os abutres.

(Samuel Gois Martins) 20/10/04

Tuesday, October 19, 2004

Amor ou ruído?

- Como é que era?

Olhando a janela. Admirando as nuvens.
Acho que concordamos a respeito da brisa.

- O que mais me trará saudades é um ruído.
- Ruído?
- Quando se deitava... Os lençóis sobre a pele... O ruído... Quer alguma coisa para beber?
- Obrigado. Água.

Levantou-se e saio de meu preguiçoso campo de visão. Agora eu via a janela. Belas nuvens. Segunda-feira.

Conto com os dedos.
Conto com os dedos por quanto tempo foi divertido.

- Nove anos – oferecendo-me a taca com água e gelo.

Ou só água? Gelo é água. Gelo e água. Tanto faz.

- Foram nove anos apreciando um ruído?
- Obrigado.
- Obrigado, pela água, claro.
- Você já agradeceu.
- E o ruído acabou. Que pena...

Dei um gole calmo, apreciando o sabor que não existe.
Certo?

- Segunda-feira, em?
- É.
- Vou sentir saudades.

Cafajeste.
Bem que podia sair da frente da janela.

- Não mais do que o seu maldito ruído.

(Samuel Gois Martins) 19/10/04

Thursday, October 14, 2004

Dança dos cisnes

Foi assim.
Começou a chuva.

- Sabe... Eu gosto da chuva.
- Eu entendo.
- Não é pelo clima, nem pelo frio, ou pela preguiça...
- Então o que é?
- O som da chuva lembra aplausos.

Ela levou o café aos lábios.
Tem vários cisnes de cristal sobre a mesinha da sala. O sofá já foi confortável há muito tempo atrás. Hoje sobrou apenas às dores nas costas.

- Original o seu jeito de gostar da chuva.
- Ela meche com o meu ego.
- É.
- Ela aplaude o nada, o silencio...
- É.

Parou de acariciar o meu cabelo, escutei o ranger do sofá. Passos inquietos até o banheiro. O som da torneira quebrada. Um palavrão irritado.

Ela volta com uma toalha sobre o cabelo. Aquela sala vazia de uma mulher solitária, o silencio, a chuva continua aplaudindo para o silencio. Os cisnes de cristal dançam divinamente.

- Você narra sem nunca existir.
- Você pegou nos meus cabelos. Eu acho que existo.
- Talvez na minha cabeça.
- Talvez a chuva esteja aplaudindo para mim.
- É... Talvez...

(Samuel Gois Martins) 14/10/04

Wednesday, October 13, 2004

Vento e Migalhas

As bolas terminavam seu percurso na mesa de sinuca. Hoje não tinha jogadores. Hoje havia somente o vento.

O ambiente naturalmente impregnado pela nevoa de giz, depressão e um pouco das cinzas do meu cigarro. Seria muito bom se houvesse alguma melodia a somar o ambiente em algum tipo de retórica artística. Seria muito bom se eu pudesse dormir.

Dormir.

A lâmpada queimou.

- Não possui luz já faz muito tempo.
- Tempo suficiente para sombras aprenderem a falar?
- Mais ou menos. Você esta com medo?
- Não vi nada de interessante na minha vida. Cabei me tornando muito indiferente. Por isso abri um bar. A propósito, vai alguma coisa?

Tateei o botão de minha camisa. Costura mal-feita, logo vai cair.

- Eu não bebo.
- Imaginei. Não vi uma boca em você.
- Isso não tem muita lógica. Se fosse por isso sequer falaria.
- Algumas coisas dizem demais sem nunca sequer falarem.
- Esta me chamando de pintura?

Deixei cair cinzas dentro do copo. Elas fazem uma alucinante viagem ao seu fundo. Seria emocionante o encontro com o que sobrou da vodka. Duas das três coisas que me matarão estão trocando idéias.

- Estou te chamando de loucura.
- Não fale besteiras.

A coisa numero três não tem muito sentido e propósito. Comecei a entender porque é bom dormir.

- E quando nós vamos?
- Você já foi, faz alguns anos.

Nada de interessante.
Cabei me tornando muito indiferente. Seria muito bom se eu pudesse dormir. Sentido e propósito. A lâmpada queimou.

- Entendo. Eu que vim lhe buscar.
- Isso.
- Eu sou o vento.
- E eu, as migalhas. Vamos ver as bolas de sinuca em movimento.

(Samuel Gois Martins) 13/10/04

Sunday, October 10, 2004

Asas no varal

Asas penduradas em um varal.
- Estão secando?
- O mais difícil foi lavar o sangue.
- Pretende... Bem... Novamente?
- Não. Apenas decorativo.

A chaleira apita.
O ambiente modifica-se com vapor delicioso.
É no ultimo suspiro da tarde, ele pousa sublime e entra pela janela. Tira aquela velha roupa sempre limpa, sempre branca.

Acende um cigarro.

- O chá esta pronto?
- As limpei.
- A chaleira esta apitando.
- Estão lá fora. Secando.
- Esse é o seu amigo?
- Isso.
- Prazer.
- Prazer.
- Vou ver o chá. Fiquem a vontade.

Nem o cheiro angustiante do cigarro estragava o incenso da chaleira. Eles se sentam na cama e como que voltando ao seu fôlego se abraçam numa espécie de amor desesperado. Trocam rápido beijo. Tão rápido quanto se distanciam. Tão rápido quanto ele retorna o cigarro aos lábios.

Tão rápido quanto ele traz o chá.

- Canela?
- Adoro canela.
- Era só o que tinha. Fico feliz que seja do gosto de vocês. Será que vai demorar muito para secarem?
- Acho que amanhã estará tudo bem.
- É.
- Vocês já se conheciam?
- Não mesmo.
- Mas...
- Não podíamos evitar.
- Podemos fazer. Se quiserem.

Cruzaram olhares termos. Caiam gotas das asas molhadas.

(Samuel Gois Martins) 11/10/2004

Saturday, October 09, 2004

O ar. Estar. Turvo

As chamas dançavam no ar, talvez caçando insetos. Talvez. Conclusões que vejo pela janela nada valem. Nada mesmo. O ar esta turvo.

- Culpe a montanha.
O inseto gigante e parado na porta do meu quarto. Tão feio quanto eu. Sua casca saliente, dura e viscosa deixa respingar no chão produto duvidoso.
- Da próxima vez venha com um pano. Você suja tudo por onde anda!
- A idéia foi sua.
- E a narrativa também. Vá embora, não quero mais o inseto nojento gigante falante.

Melhor assim, sem inseto.
- Sem janela também.

Perfeito.

E o ar continuava turvo. Isso aqui parece um hospício. Talvez porque eu seja louco. Ou quase isso. Sair. Preciso sair. Eu levanto, e para surpresa minha e de todos: um corredor.

- Sempre tem um corredor.
- Culpe a montanha.
- É você, meu amor.
- Sou eu, o seu amor.
- Então por isso apenas uma ilusão. Remédios.

Onde estão meus remédios?
De novo no quarto. A janela esta lá. O inseto também. Acho que pisei nele. Aqui estão os remédios.

Corredor escuro.
- Eu posso te guiar.
- Você, meu amor, nada poderá me dar.
- Não me chame de ilusão. Não seja cruel.
- Corredor escuro. Esquerda e depois direita.

E depois, e depois?

- Não me ignore. Não ignore o seu amor. É culpa da montanha, você sabe.
- Eu sei que logo saio daqui. Quero comer macarrão.
- Eu faço macarrão para você meu amor, todos os dias.

Estou descalço. Chão frio. Lembro de minha mãe mandando por as sandálias. Ironia. Lembro dela mandando comer com a boca fechada também. Cadê a maldita montanha? O ar esta turvo, não consigo respirar. Para onde foi o meu amor?

(Samuel Gois Martins) 09/10/2004

Wednesday, October 06, 2004

Profissional

Tem um fato que merece ser notado. Ruídos. Tenho escutado ruídos saindo de minha privada.
Antes ou depois?
Antes.
E depois?
E depois é a descarga.
Não seu idiota! Depois da descarga os ruídos continuam?
Não sei, eu logo saio do banheiro por causa do cheiro.
Que cheiro?
Ce sabe... O cheiro.
Ah...
Ele fitou o chão. Palavra legal essa, “fitar”. V.t. 1. Fixar a vista em. 2. Fixar ( a atenção, etc.). P.2. Olhar-se mutuamente. E como anda o governo?
O governo?
O governo.
O governo anda sempre o governo. Você devia varrer mais o chão em.
Ele era bom. Sabia fitar. Olha só como fitou o chão, sabia ate que não o varri hoje. Ele é mesmo um fitador profissional. Não mentiram quando o recomendaram.
Quer suco?
Que suco?
Você escolhe.
Quero graviola.
Só tem laranja.
Então faz de laranja. Onde fica o banheiro para averiguação.
Deus! “Averiguação”. Que cara mais profissional, não vou relutar em recomendá-lo para meus colegas!

(Samuel Gois Martins) 06/10/2004

Saturday, October 02, 2004

Haloscan commenting and trackback have been added to this blog.

Pefume das flores

- Você lembra do perfume das flores?
- Nada vale o jardim de flores. O seu perfume lembra apenas o cheiro da morte.

Tiveram um duelo de olhar que para essa estória importa apenas que durou uma eternidade. Seu tempo real logicamente que foi curto, ou não. Por quê? Dava pra sentir as estações mudando.

- Vai se sentar?
- Veja só a neblina. Feita apenas de nada. E quantos os grandes navios que por ela foram tragados?
- Mas os seus fantasmas continuam navegando.
- Isso aqui já foi muito bonito.

Sabe, não tem muito que se explicar. Dia, noite. Tanto faz, era escuro e tenebroso do mesmo jeito. O que se sabe sobre as duas figuras? Irmãos? Amigos de infância? Será que se conheciam? Onde estavam? Um grande campo que dava bela vista para o litoral. O jardim de um casarão, provavelmente a casa de verão de um figurão tragado pela decadência.

Decadência.

- Vai se sentar?
- Os velhos bancos estão enferrujados demais.
- Mas o musgo deu a eles uma beleza singular.
- Você se lembra do perfume das flores?
- Foram com essas mesmas flores que embalaram muitos cadáveres.
- Era maravilhoso...
- O cheiro da morte.
- No chão. Vamos nos sentar no chão.

Macia terra infértil. Isso não era um jardim, era um cemitério de lembranças e emoções. Os navios fantasmas zarpavam para novos corações. Um usava óculos escuros que escondiam olhos e sobrancelhas, ele recordava de cada segundo. Outro era tanto quanto o qual, mas nada tinha a esconder, apenas seus olhos costurados.

Tanto faz, com ou sem olhos, óculos escuros ou não. A neblina cobria tudo.

- Somos apenas parte da neblina?
- Talvez.
- Temos lembranças.
- Este é o cemitério delas.
- Quando chegara o nosso navio?
- As neblinas que te digam. Mas acho que vai ser logo.
- Eu não sinto nada.
- Também um cemitério de emoções.

(Samuel Gois Martins) 01/10/2004